É estruturalmente controversa a hipótese de manutenção do teto, mediante a quebra do piso de uma edificação. Tetos não pairam sozinhos no ar, tampouco antecedem — em termos de prioridade construtiva — os pisos.
Desse modo, o choro de tantos analistas carpideiros em torno da suposta morte do teto global de despesas primárias, dado pela Emenda 95/2016, soa um tanto irracional. Ora, o que impôs a fática necessidade de rever aludido regime foi a sua insana pretensão, desde a origem, de mitigar (quiçá implodir) as parcas garantias constitucionais que operam como piso de proteção social.
A desigualdade no Brasil segue sendo há séculos brutalmente escravocrata, mas contratará uma convulsão análoga à chilena quem insistir em reduzir muito mais o tamanho do Estado, a pretexto de ajuste fiscal iniquamente centrado apenas no controle das despesas primárias.
Até o ex-presidente Michel Temer teve a ousadia de assumir aludido risco, de modo deveras tergiversador, aliás, para defender a manutenção do teto, mediante nova decretação de calamidade pública em busca da prorrogação do Auxílio Emergencial pelo terceiro ano consecutivo (estendendo-o de 2020 até 2022). A proposta publicada em artigo de opinião na Folha de S. Paulo é juridicamente obtusa e politicamente perigosa, senão vejamos:
“É que, como dito anteriormente, a emenda [EC 95] prevê a hipótese de calamidade pública. E aqui vem a pergunta: vive-se ou não hipótese dessa calamidade em face da angustiante pobreza existente no país, agravada pela pandemia e ainda subsistente?
Há sempre a preocupação de que os vulneráveis, acentuada sua pobreza, possam rebelar-se e, em consequência, praticar atos que desagreguem a nação brasileira. Este fato revela a razoável imprevisibilidade e, em consequência, a urgência a que alude o artigo 167, parágrafo terceiro, já mencionado. Acresce que um dos princípios fundamentais da nossa Constituição é a “erradicação da pobreza” a teor do seu artigo 3, III.
Sei que estou levando essa interpretação às últimas consequências, mas ela tem duas vertentes sistêmicas: de um lado, reconhece que é “calamitosa” a realidade do pauperismo brasileiro; de outro, aplica regra constitucional que não elimina o teto de gastos públicos. Portanto, atende aos vulneráveis e, ao mesmo tempo, mantém íntegro o dispositivo constitucional assegurador do teto. Somente assim demonstraremos ao mercado interno e a nossa seriedade fiscal e a nossa preocupação com a pobreza.”
Se se consumar a proposta — com ou sem decretação de calamidade — de continuar a pagar o auxílio emergencial por meio de créditos extraordinários, restará distorcido, de novo, o sentido teleológico do §3º do artigo 167 da Constituição de 1988, para acomodar essa obviamente previsível despesa.
Há quem suscite haver acordo até mesmo com o Tribunal de Contas da União para viabilizar tal previsibilidade “imprevisível” da miséria brasileira https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/10/tcu-deve-abrir-caminho-para-prorrogacao-de-auxilio-emergencial-mas-aguarda-detalhes-do-governo.shtml. Seria mais uma acomodação hipócrita, diante da resistência do Congresso Nacional [1] em aprovar o substitutivo à PEC 23/2021 (que tende a operar praticamente como se fosse um Orçamento d’A Guerra Eleitoral em 2022).
Não tem teto o cinismo fiscal dos defensores de créditos extraordinários para despesas previsíveis e, portanto, planejáveis no ciclo ordinário das políticas públicas. Igualmente ilimitadas são a invisibilidade da fome de milhões de cidadãos e a desfaçatez de banqueiros consultados — em caráter subjetivo e opaco — sobre a taxa básica de juros que lhes aproveita diretamente, com desproporcional repercussão para a dívida pública https://valor.globo.com/politica/noticia/2021/10/25/analise-andre-esteves-exibe-acesso-ao-poder-e-se-mostra-como-um-pedagogo-que-custa-a-aprender.ghtml.
Embora não esteja formalmente assim nomeado, o teto impõe, na prática, uma espécie de apartheid fiscal em nosso país. Como escrevi no meu último artigo para esta coluna Contas à Vista https://www.conjur.com.br/2021-out-19/contas-vista-diagnosticos-prognosticos-supostamente-neutros-frustram-futuro-comum, vivemos todos uma fome de civilidade democrática na seara orçamentário-financeira.
Sílvio Almeida chega a falar em democracia impossível no Brasil, enquanto o orçamento público excluir o povo das suas nucleares deliberações alocativas https://www1.folha.uol.com.br/colunas/silvio-almeida/2021/10/fome-de-democracia.shtml:
“Um país em que as pessoas reviram lixo para comer é um país de democracia impossível. […] É importante lembrar que a ditadura militar, ao contrário do que alguns dizem, foi, ela sim, um desastre econômico, um projeto de captura da economia brasileira por interesses privados que só a violência autoritária conseguia ocultar.
[…] Quem quiser algo parecido com uma democracia no Brasil vai ter que assumir que ela só será viável se o povo for incluído no orçamento. E quem quiser o desenvolvimento econômico vai ter que lidar com a ojeriza que parte da sociedade tem de uma democracia que implique na participação popular, inclusive nas decisões econômicas.”
É preciso denunciar, reitero, o apartheid fiscal em que vivemos, porque só são fixados constrangimentos sobre o custeio dos serviços públicos essenciais no âmbito da educação, do Sistema Único de Saúde, da assistência social, da preservação ambiental, da proteção às crianças, aos indígenas e aos idosos, da ciência e tecnologia etc. A regressiva matriz tributária brasileira e o caráter irrefreado e opaco das despesas financeiras nunca são postos em debate em relação à busca de sustentabilidade da nossa dívida pública.
Enquanto o Estado é reduzido para a promoção dos direitos fundamentais, é ocultada a falta de limites para as dívidas consolidada e mobiliária da União (em afronta aos artigo 48, XIV e artigo 52, VI da CF); bem como é negada a necessidade de ajuste efetivo sobre as renúncias fiscais perenes, a sonegação premiada em Refis sucessivos, a dívida ativa trilionária que não se arrecada adequadamente e se quer securitizar sem resguardar sequer as vinculações que amparam os pisos em saúde e educação (vide redação proposta no substitutivo da PEC 23/2021 para o §7º do artigo 167 da CF/1988), entre outras iniquidades fiscais.
A suposta morte do teto, a bem da verdade, expõe consigo também o cadáver insepulto da nossa desigualdade. Se o cinismo for posto de lado por um breve momento, certamente veremos que finados estão tanto o teto de despesas primárias, quanto o piso da proteção social. Ambos vieram a óbito (ainda que muitos se recusem a reconhecer tal fato), porque não ousamos construir uma agenda de ajuste fiscal equitativo que enfrentasse a regressividade tributária e a repercussão ilimitada na dívida pública das despesas financeiras decorrentes das opções de política monetária, cambial e creditícia.
Enfim, hoje é dia de réquiem para nossa frágil democracia que não consegue sequer pautar suas prioridades alocativas no ciclo orçamentário do país e na gestão constitucionalmente adequada da dívida pública. Covas rasas aguardam nossas regras fiscais iníquas.
[1] Como noticiado aqui https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2021/10/28/sem-quorum-votacao-da-pec-dos-precatorios-deve-ficar-para-proxima-semana.htm e aqui https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/10/traicoes-e-ausencia-de-deputados-aliados-minguaram-apoio-a-pec-dos-precatorios.shtml.
Élida Graziane Pinto é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Fonte: Artigo publicado na Revista Consultor Jurídico, 2 de novembro de 2021.