Em 25 de outubro de 2021 a lei de ação judicial civil “mais penal do Brasil” foi significativamente alterada em seu texto, apresentando novos dispositivos, alguns contendo uma interpretação que há muito já era proferida nas decisões dos Tribunais Superiores. Sempre é oportuno mencionar que houve tentativas de regular a punição da improbidade administrativa, (Lei Pitombo-Godói Ilha – Lei nº 3.164/1956; Lei Bilac Pinto Lei nº 3.502/1958) até a sua inclusão no texto da Constituição Federal de 1988 no inciso V, do artigo 15; no §4º do art. 37. Após acirrada discussão no Congresso Nacional, com uma expressiva importância dada ao Ministério Público, foi publicada a Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429 de 02 de junho de 1992, também conhecida como LIA). Contudo, as alterações promovidas pela Lei 14.230/2021, demandam alguns questionamentos, dos quais um deles é o objetivo deste texto: responder sobre a retroatividade máxima de seus efeitos.
Diversos formadores de opinião mencionaram na época da inicial proposta (Projeto de Lei 1.446/1991), que a lei surgia para “combater o agente ímprobo do país”. E, talvez por essa expressão ter sido cunhada, estabeleceu-se no imaginário social brasileiro que a regra no Brasil seria que os agentes públicos seriam ímprobos, a exceção: os probos. Pela estrutura do texto da Lei 8.429/92, unida ao animo de punir dos órgãos de fiscalização e controle, criou-se um cenário punitivo aos agentes públicos brasileiros, mormente se falando de agentes políticos municipais dos mais de 5.500 municípios existentes no Brasil.
A lei por certo pendia para uma excessiva punição de agentes públicos, os quais em alguns casos sequer tinham se aproximado do mais longínquo pensamento da intenção de agir com improbidade. O problema central é que o legislador se utilizou cláusulas abertas e conceitos jurídicos indeterminados, o que garantiu um extensivo espaço acusatório com possibilidade tanto para punir típicos atos de improbidade administrativa quanto para afrontar corriqueiras falhas funcionais.
No caminhar dos quase 30 anos da LIA, os Tribunais Superiores, acertadamente, deram “alguns passos (largos e positivos) para o lado”, afastando-se, em seus julgados, das interpretações arbitrárias que os órgãos de controle e acusação insistiam. Destacaram se os arts. 9º e 11, pois seus textos silenciaram a respeito dos elementos da culpa (dolo e culpa em sentido estrito). Entendeu-se por dialogar com a interpretação dos artigos do Código Penal, ou seja, para configurar o ato de improbidade por enriquecimento ilícito ou por afronta aos princípios da administração pública, deveria ficar comprovado o dolo do agente.
Em relação aos agentes políticos, não há de se duvidar que uma das consequências mais temidas é perda dos direitos políticos, em virtude da previsão contida no artigo 15, inciso V combinado com o artigo 37, § 4º, ambos da Constituição Federal. A perda dos direitos políticos, inevitavelmente leva a impossibilidade de votar e ser votado, afetando o pleno direito dos exercícios políticos, exigido como condição de elegibilidade, conforme o §3º, inciso II do artigo 14 da Constituição da República. Deste modo, a condenação por improbidade administrativa atrai os 8 (oito) anos de inelegibilidade, consoante previsto no artigo 1º, alíneas “g” e “l” da Lei Complementar nº 64/90, contada a partir da decisão condenatória. A este respeito, inclusive, há discussão pendente de julgamento no Supremo Tribunal Federal e Tribunal Superior Eleitoral, no que tange a possibilidade de detração da pena (vide medida cautelar na ADI 6.630 e processo nº 0602016-68.2020.6.00.0000 – TSE).
A Lei 14.230/2021 trouxe modificação e como consta no Projeto de Lei 10887/2018: “Bastante significativa é a supressão do ato de improbidade praticado mediante culpa”. Nos artigos 9º e 11 fica agora exposto o entendimento já reiterado nos Tribunais Superiores da necessidade de comprovação do elemento dolo. Já no artigo 10, com inteligente e surpreendente avanço, o novo texto do caput suprimiu o elemento culpa (negligência, imprudência, imperícia).
Sem embargo, diante destas substanciais alterações no regime de responsabilidade, suscitou-se a discussão sobre a retroatividade dos novos dispositivos da Lei de Improbidade. Por óbvio, algumas manifestações do parquet lutam pela irretroatividade da lei (Orientação Nº 12/5ª CCR; Seminário Retrocessos no Combate à Improbidade Administrativa e aqui). Contudo, sem razão.
A regra é a irretroatividade. Os textos normativos dispõem para o futuro e não há como o direito voltar atrás e punir retroativamente o indivíduo por condutas pretéritas, se antes isso não estava previsto como crime ou contravenção – tempus regit actum. Caso uma conduta humana prevista na lei penal como punível como crime ou contravenção não é assim mais considerada por uma nova lei mais benéfica, não resta dúvida que o agora ex-infrator deve ser assim beneficiado. Esta exceção da regra da irretroatividade é a chamada novatio legis in mellius. Esta é a leitura constitucionalmente adequada do disposto no inciso XL do art. 5º da Constituição da República, previsto no Capítulo I do Título II – Dos Direitos E Garantias Fundamentais. A estrutura redacional desta regra constitucional fundamental contém uma exceção literal: “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu” (grifo nosso).
A força retroativa de uma lei benéfica para o acusado pode ser avaliada com o grau de intensidade dos efeitos de sua retroação: máxima, média ou mínima. Como destacado acertadamente pelo Ministro Moreira Alves na ADI 493 (adotado como razões de voto pelo Ministro Gilmar Mendes na ADC 30): (i) com a retroatividade máxima (restitutória) a lei nova alcança a coisa julgada (sentença irrecorrível) ou os fatos jurídicos consumados; (ii) a retroatividade média contempla os direitos exigíveis, mas não realizados antes de sua vigência; (iii) a retroatividade mínima (temperada/mitigada) atinge exclusivamente os efeitos dos fatos pretéritos, verificados após a data em que a lei nova entra em vigor. Sobre a interpretação da regra da retroatividade de lei benéfica, cabe recordar o enunciado da Súmula 611 do Supremo Tribunal Federal “Transitada em julgado a sentença condenatória, compete ao juízo das execuções a aplicação de lei mais benigna”.
Desde que entrou em vigor, a Lei 14.230/2021 foi citada em pelo menos oito julgamentos do TJ-SP (aqui). Em um destes, da 10ª Câmara de Direito Público, absolveu-se oito pessoas e uma empresa por supostas irregularidades na licitação e execução de um contrato de prestação de serviços mecânicos no município de Vargem.
Como conclusão, é indeclinável sustentar a aplicação da máxima retroatividade da Lei Nº 14.230/2021, com efeitos restitutórios, por se tratar de nova lei benéfica com caráter eminentemente sancionatório civil e político, nos termos da interpretação sistemática e hierárquico-normativa do inciso XL, do art. 5º, da CF/88.
*Assessor Jurídico da Associação Brasileira de Município (ABM)
Artigo escrito em conjunto com:
Marco Aurélio R. da Cunha e Cruz: Doutor em Direito Constitucional | Universidad de Sevilla |
Professor Permanente do PPGD-UNOESC | Professor Colaborador do PPGD-UFPEL Editor[1]Chefe | EJJL | Qualis A1 | Grupo de Pesquisa CNPq Proteção das Liberdades na Sociedade do
Controle. Sócio da Guilherme Aragão Advocacia e Consultoria.
Prof. Dr. Yuri Schneider: Professor e pesquisador em Direito Administrativo e Políticas Sociais
e Direito da Universidade Federal de Santa Maria – UFSM/RS. Coordenador do Grupo de
Pesquisa REM PUBLICAM – DIREITO ADMINISTRATIVO CONTEMPORÂNEO, GESTÃO
PÚBLICA E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL. Consultor e Parecerista em Direito
Administrativo e Constitucional.