A Folha trouxe, em 30 de abril último, a reportagem “SUS aparece pela primeira vez entre os melhores serviços públicos de São Paulo”. Já no início o texto mostra que o Sistema Único de Saúde não ficou apenas “entre os melhores”, mas foi “o melhor serviço público” na avaliação dos paulistanos.
Júbilo entre os sanitaristas! Há muito já sabíamos do valor civilizatório e sanitário do SUS, mas, na era atual, em que aquilo que não está nas mídias parece não existir, tal reconhecimento social deve ser valorizado.
Por que será que ocorreu justo neste momento da pandemia?
Algumas hipóteses: 1 – no auge da pandemia na Europa, noticiários no Brasil mostravam italianos e espanhóis isolados nos apartamentos e aplaudindo, das varandas, os profissionais de saúde. Boris Johnson, primeiro-ministro britânico, agradeceu ao NHS (o “SUS britânico”) por sua recuperação e citou dois profissionais de saúde que cuidaram dele — Jenny, da Nova Zelândia, e, Luís, de Portugal. Reconheceu, inclusive, a contribuição de estrangeiros ao país. Esses três países possuem sistemas de saúde financiados com recursos governamentais, assim como o SUS; 2 – na linha da simpatia europeia, a Rede Globo exibiu depoimentos de profissionais de saúde, muitos trabalhando no SUS —um reconhecimento justo diante da dedicação aos pacientes acometidos pela Covid-19; 3 – Luiz Henrique Mandetta, então ministro da Saúde, que já tinha defendido corte de despesas para o sistema e sido favorável ao fim do programa Mais Médicos (validado pelos sanitaristas como política de mais acesso a serviços), durante a pandemia, entretanto, contribuiu para fortalecer o SUS no imaginário social ao se apresentar, com sua equipe, usando coletes com o logo do SUS; e 4 – a perda de empregos durante a pandemia levou pessoas que tinham planos de saúde a usar serviços públicos —talvez tenham começado a divulgar que o SUS existe e, sim, funciona!
Creio que todos esses aspectos propagandearam a existência do sistema para corações e mentes, que antes não percebiam sua materialidade em suas vidas. Ou apenas conheciam os “problemas” do SUS, que são diversos, mas não empecilhos à sua grandeza. Nós, sanitaristas, reconhecemos que a disputa do imaginário social da população pela defesa de um sistema universal de saúde demanda uma política de marketing social bem engendrada. Porém, é a alma do sistema público que nos interessa e encanta, pois, “sem o SUS, é a barbárie”.
Nesta alma encontramos o maior sistema de saúde público e universal em países com mais de 100 milhões de habitantes; uma rede de atenção básica que leva vacinas, medicamentos e cuidados para todo o Brasil; o maior programa público de transplantes de órgãos do mundo, que financia a maioria dos procedimentos; a distribuição universal de medicamentos para pacientes com doenças crônicas, inclusive HIV/Aids; e a distribuição ampla de medicamentos de alto custo, entre outros benefícios.
Se tudo isso está na alma cuidadora do SUS, não podemos deixar de ressaltar seu papel de autoridade sanitária brasileira (federal, estadual e municipal) nas áreas de vigilâncias e regulação. Vale lembrar que a Anvisa e a Agência Nacional de Saúde Suplementar estão sob o manto político do ministério. Mas, por favor, entendam o SUS como algo maior, além do Ministério da Saúde.
Brasília também precisa entender que deve prover serviços para todas as situações que comprometam a saúde dos brasileiros, de maneira contínua e com qualidade. E, se pandemias são como guerras, não podemos nos equipar apenas durante as batalhas. O sistema precisa estar apto a lutar quando outro invasor pandêmico nos atacar. Tudo isso demanda financiamento adequado e sustentável.
É surpreendente, mas uma constatação desejável, que, durante a pandemia, vozes liberais, do mundo econômico, tenham afirmado que “o retorno social de se ter um sistema de saúde mais adequado supera o custo financeiro”. Mas, para mantermos na agenda política o reconhecimento social do SUS, é mister que se junte à sua alma as vozes que não o propagandeiam como um negócio.
Marco Akerman
Médico sanitarista, é professor titular do Departamento de Política, Gestão e Saúde da Faculdade de Saúde Pública da USP
(Artigo publicado na Folha de S. Paulo no dia 1 de junho de 2021)