Em consequência à falta de vacinas por inação do governo federal durante o ano de 2020, quando seu planejamento e prévia negociação contratual eram devidas, querem agora os senhores parlamentares impor à sociedade o indevido e inoportuno debate a respeito da compra de vacinas pelo setor privado, um jogo de cena para encobrir irresponsabilidades públicas e omissões governamentais na compra tempestiva dos imunizantes, o que tem aumentado a doença e a morte pela Covid-19.
Tivessem as autoridades competentes adotadas as providências cabíveis em tempo oportuno, sabedores das dificuldades de compra pela escassez de imunizantes no mundo, certamente o país estaria em melhor situação.
Num ambiente do salve-se quem puder, quem pode mais sai à frente em detrimento daqueles que só tem o SUS como salvaguarda sanitária. Isso revela uma sociedade distópica, que se deteriora em seus valores morais e éticos, inclusive quanto ao modelo socioeconômico brasileiro que deixa grande parte da população em situação de profunda desigualdade. Em pleno século XXI não mais se pode admitir sociedades que ainda mantém párias sociais. A própria pandemia da Covid-19, fatalmente imporá a necessidade de revisão de valores políticos, sociais e econômicos, por inadmissível o convívio silencioso, omisso e cego com a desigualdade social.
No Brasil, o programa de imunização tem mais de 45 anos, criado legalmente em 1975 com a institucionalização do Plano Nacional de Imunização (PNI), Lei n° 6.259. Desde que saúde passou a ser direito de todos e dever do Estado (1988) e com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), é dever público garantir acesso universal e igualitário às ações e serviços de promoção, proteção e recuperação da saúde. Trata-se de direito fundamental, vinculado ao direito à vida, de responsabilidade estatal, que requer medidas preventivas ao agravo à saúde e enfermidades.
O direito à saúde é de todos os cidadãos, por isso o acesso aos serviços de saúde é universal e igualitário. Mesmo havendo uma permissão constitucional para a iniciativa privada atuar na saúde, ela está circunscrita aos serviços assistenciais. As atividades de saúde de interesse e efeitos coletivos se reservam ao Estado, impondo-se às três esferas de governo a sua prática. A liberdade conferida ao setor privado diz respeito aos serviços de recuperação da saúde, geralmente de cunho individualizado.
Vacina em pandemias e epidemias é assunto que se reserva ao Estado pelo interesse coletivo de seus efeitos. Por se tratar de uma das medidas de prevenção e proteção da saúde da coletividade, somente o Estado tem poderes para a sua coordenação e regulamentação. E nesse sentido, há de se observar os princípios do acesso universal e da igualdade de atendimento previstos na Constituição, artigo 196. Eles se impõem a qualquer programa de vacina, incluindo obviamente a sua aquisição, ainda mais quando há escassez no mundo, um dos motivos de não se poder facultar ao particular a sua aquisição, uma vez que não há excedente a ser vendido para quem possa pagar. Na preferência do particular sobre o coletivo estará se referindo os princípios acima mencionados, em especial a igualdade de atendimento.
Importante ressaltar que na saúde há ações e serviços dotados de poder de autoridade do Estado, como a regulatória, de que a Anvisa é um exemplo; a coordenação de epidemias; as campanhas de vacinação e a vacinação em tempos de pandemia e epidemias. É do Estado a coordenação do PNI em âmbito nacional e nesse sentido não cabe permissão legal para a aquisição de imunizante contra a Covid-19 em ambiente de escassez. Até porque ao se facultar ao setor privado a sua aquisição, isso implica retirar do Poder Público a possibilidade de compra para o atendimento universal e igualitário em favor daqueles de podem pagar. Tal fato é inconstitucional, além de imoral.
Esperamos que o Congresso Nacional não cometa tal infração aprovando lei inconstitucional, porque seria uma grave demonstração de que a desigualdade social mata primeiro os mais pobres.
Há um atraso histórico na diminuição das desigualdades sociais no país, não sendo admissível mais um desatino na condução do controle da pandemia da Covid-19. Que os parlamentares de fato representem toda a sociedade de modo igual, sem os privilégios de sempre.
*Lenir Santos, advogada, doutora em Saúde Pública pela Unicamp, professora colaboradora do Departamento Saúde Coletiva Unicamp e presidente do Instituto de Direito Sanitário – IDISA.