O Congresso Nacional pretende, por meio do Projeto de Lei Complementar 18/2022 (PLP 18/2022), classificar como essenciais os bens e serviços relativos aos combustíveis, energia elétrica, comunicações e transporte coletivo. A principal finalidade do aludido projeto é limitar a alíquota máxima do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) de tais itens.
A perda de arrecadação decorrente do PLP 18 para estados, Distrito Federal e municípios foi estimada em até R$ 115 bilhões pelo Comitê Nacional dos Secretários Estaduais de Fazenda (Comsefaz). As compensações em debate no Senado são insuficientes para reequilibrar os impactos da proposta tanto sobre as contas subnacionais, quanto sobre os pisos em saúde e educação, os quais são deveres de aplicação mínima de determinados porcentuais de impostos e transferências de impostos nos estados, DF e municípios. Tomando como base a estimativa do Comsefaz para a perda global de arrecadação do ICMS, o custeio da educação pública pode ser reduzido em cerca R$ 30 bilhões (haja vista o impacto no piso em manutenção e desenvolvimento do ensino e também no Fundeb), enquanto o financiamento da saúde tende a ser encolhido em aproximadamente R$ 15 bilhões.
Para o Comsefaz, a limitação de alíquota do ICMS pretendida pelo Congresso implica risco de “desassistência de serviços públicos essenciais”, na medida em que:
“A compensação proposta pela relatoria apresenta algumas alterações do texto inicial, mas ainda se mantém muito distante do necessário para garantir o equilíbrio fiscal dos entes subnacionais. O tal ‘gatilho’ de 5% passa a não considerar a arrecadação total do ICMS, restringindo apenas aos bens e serviços objetos do texto. A contrapartida oferecida aos Estados seria realizada apenas no caso dos entes que possuem dívida, sobre o serviço da dívida e não mais sobre o estoque, como previa o texto da Câmara. Na prática, apenas aqueles que possuem dívida com a União teriam as próximas parcelas reduzidas ou zeradas, a depender do valor da dívida, em 2022. Antes, conforme a redução do estoque, a redução na parcela se diluiria ao longo do tempo.
Mas, e para os Estados que não possuem dívidas? Por incrível que pareça, para estes, a compensação ocorreria apenas em 2023 com recursos da CFEM (Compensação Financeira pela Exploração Mineral). Também seria possibilitada a operações de crédito junto a instituições financeiras oficiais em montante dimensionado pela perda de arrecadação derivada desta lei, independentemente de sua classificação quanto à capacidade de pagamento (Capag).
Como vem alertando o Comsefaz (Comitê Nacional dos Secretários de Fazenda dos Estados e Distrito Federal), compensar a redução de ICMS com dedução de dívida não faz sentido. O texto impactará a RCL (Receita Corrente Líquida) e a receita primária, ao passo que a redução de despesa financeira com a União interfere na despesa não primária, isso quer dizer que, ainda que a medida fosse impecável e garantisse uma compensação perfeita, estariam afetados os indicadores da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) de pessoal e dívida, as aplicações vinculadas em saúde e educação (RLIT) e a meta de primário de cada ente subnacional. Soma-se a isso o fato de que a disposição é válida apenas para o ano de 2022, enquanto que a lei traz profundas alterações estruturais, que em um futuro bem próximo será refletido nos serviços estaduais.
[…] caso o PLP 18/2022 seja aprovado, a frustação nos orçamentos estaduais refletiria em cortes severos no financiamento de serviços aos mais pobres.”
Porquanto alheio a uma reforma tributária sistêmica, o debate do PLP 18/2022 se revela enviesado. Assim, sua concepção sobre a essencialidade na dimensão da arrecadação tributária dramaticamente coloca em xeque a essencialidade na prestação de serviços públicos indisponíveis, vez que compromete a fonte de custeio dos gastos que lhes asseguram a consecução estatal diuturnamente nos entes subnacionais.
Trata-se de proposta alegadamente concebida para fazer face à escalada inflacionária que o país tem vivido, sem que haja garantia de que a inibição da arrecadação com o ICMS chegue, de fato, ao consumidor final.
A esse respeito, Paulo César Ribeiro Lima e Bruno Moretti evidenciaram o risco de que a promessa de redução do preço dos combustíveis se revele falaciosa. Segundo tais autores, a conta da inibição da arrecadação do ICMS será suportada, primordialmente, pelo usuário do Sistema Único de Saúde e da educação pública:
“Ante o exposto, coloca-se a seguinte indagação: a redução do tributo tem impacto efetivo sobre o preço final ao consumidor?
Para responder à questão, é preciso lembrar que a Petrobras passou a adotar formalmente, desde 2016, o preço de paridade de importação — PPI, agindo como se fosse mera importadora de combustíveis. Aumentos no preço do barril de petróleo e desvalorizações do câmbio tendem a ser transferidos aos preços internos da Petrobras, levando a uma elevada volatilidade e ao aumento de patamar dos preços.
[…] Desse modo, eventual reajuste dos valores pela empresa eliminaria ou consumiria parcela do possível impacto da redução do ICMS sobre preços finais da gasolina ao consumidor.
Além disso, não há qualquer garantia de que a diminuição do imposto chegue à bomba, podendo se converter em maior margem de lucro ao longo da cadeia produtiva.
Logo, mantido o PPI, o PLP 18 tende a ser ineficaz para reduzir preço de combustíveis ao consumidor final. De outro lado, a perda tributária de estados e municípios será estrutural. […]
Em 2021, o ICMS representou 86% da arrecadação dos estados. Apenas combustíveis, petróleo, lubrificantes e energia responderam por quase 30% do valor arrecadado com o imposto. Os dados são expressivos e mostram a relevância do ICMS para os estados. Ademais, os municípios ficam com 25% do ICMS, por isso esses entes federativos também perderão receitas.
O ponto central a destacar é que os gastos mínimos obrigatórios em educação e saúde são indexados à receita de impostos de estados e municípios. Logo, uma queda da receita poderia afetar diretamente esses e outros serviços públicos à população.
[…] É como se o usuário do SUS e da educação pública fosse a variável de ajuste e ‘pagasse a conta’ pelos elevados preços praticados pela Petrobras e pelos produtores do etanol e biodiesel.
[…] Nesse contexto, reforça-se o cenário de que o PLP 18 não apenas é ineficaz como tem largo potencial para induzir uma precarização estrutural dos serviços públicos, de modo que seus efeitos transcendem o curto prazo.”
Fato é que os serviços públicos essenciais no Brasil estão erigidos sobre dois pilares, a saber, vinculação orçamentária e organização federativa solidária, os quais deveriam garantir — em reforço recíproco — a dimensão objetiva dos direitos à saúde e à educação e do arranjo sistêmico da seguridade social.
Na tensão entre estabilização monetária e efetividade dos direitos sociais, tem sido historicamente recorrente a erosão das proteções constitucionais a esses últimos. Desvincular receitas, reduzir o escopo dos regimes de gasto mínimo e restringir o alcance interpretativo de transferências intergovernamentais equalizadoras das distorções federativas tornou-se estratégia reiterada, ao longo do tempo, de uma falseada e frágil agenda de controle da inflação.
É oportuno lembrar que há décadas se sucede o esvaziamento da responsabilidade de equalização fiscal da União em face dos entes subnacionais nas políticas públicas de educação e saúde, cujo arranjo orgânico constitucionalmente pressupõe rateio federativo de recursos na forma tanto do Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), quanto do Sistema Único de Saúde (SUS).
Na educação, cabe citar três exemplos de deliberada guerra fiscal no financiamento federativo da educação pública: o primeiro deles reside na omissão federal quanto ao dever de complementação equitativa na educação básica obrigatória afronta o artigo 211, §§1º e 7º da Constituição e as estratégias 7.21, 20.6 e 20.7 do Plano Nacional de Educação (Lei federal nº 13.005/2014) que se referem ao conceito do custo aluno qualidade inicial e custo aluno qualidade (CAQi e CAQ). O segundo reside na pura e simples postergação da quitação dos precatórios do extinto Fundef empreendida pelo art. 4º da Emenda 114/2021. O terceiro exemplo pode ser extraído do fato de que, a despeito de a Emenda 108/2020 haver aumentado, de forma escalonada até 2026, a complementação federal ao Fundeb, o PLP 18/2022 pode simplesmente anular tal acréscimo de forma indireta e imediata.
Na saúde, cabe resgatar dois exemplos de falseamento das responsabilidades federativas de custeio do SUS. O primeiro pode ser visto na falta de consolidação das pactuações federativas celebradas na Comissão Intergestores Triparte para aprovação do Conselho Nacional de Saúde e publicação pelo Ministério da Saúde restringe nuclearmente o alcance do artigo 198, §3º, II da Constituição. O segundo exemplo passa pelo fato de que o piso federal em ações e serviços públicos de saúde — fixado inicialmente pelo artigo 55 do ADCT em 30% do orçamento da Seguridade Social — foi redesenhado de forma reducionista pelas Emendas 29/2000, 86/2015 e 95/2016, o que fez com que a participação proporcional da União no custeio do SUS caísse em quase 25% no volume global de recursos públicos vertidos pelos três níveis da federação.
Eis o contexto em que é preciso reconhecer, como dois lados da mesma moeda, a regressividade proporcional de custeio dos direitos fundamentais por parte da União, de um lado, e a fragilização recorrente da equitativa descentralização de responsabilidades e repasses federativos que amparam políticas públicas definidas estruturalmente no texto constitucional, de outro.
O PLP 18/2022 acirra tal conflito ao mitigar — acintosamente — nas contas estaduais e municipais a progressividade de custeio proporcional à arrecadação tributária nas ações e serviços públicos de saúde e nas atividades de manutenção e desenvolvimento do ensino (respectivamente artigos 198 e 212 da Constituição).
O que está em disputa, estruturalmente, é a interpretação sobre o alcance das normas que tanto distribuem responsabilidades federativas em arranjos orgânicos para consecução de políticas públicas; quanto fixam vinculações de receita, deveres de gasto mínimo em saúde e educação e um orçamento especializado na seguridade social.
Enquanto são erodidos os pilares sociais da Constituição de 1988, nunca saem do papel efetivamente as promessas residuais de enfrentar as iniquidades fiscais que perpassam as receitas (a exemplo das renúncias fiscais perenes, da dívida ativa inexecutada, da sonegação premiada em Refis sucessivos e da regressiva matriz tributária) e as despesas financeiras (do que dá provas a falta de limites para as dívidas consolidada e mobiliária da União).
É preciso defender o federalismo conjuntamente com os pisos em saúde e educação, porque a guerra fiscal brasileira perpassa ambas as dimensões: inibição de receitas e descentralização de despesas, sem suficiente equalização federativa dos recursos e das responsabilidades de custeio na consecução dos direitos fundamentais.
Sem tal defesa concomitante, será empreendida de forma ainda mais veloz e evidente a erosão dos direitos sociais, em seus arranjos federativo e financeiro, em desconstrução do eixo de identidade da Constituição de 1988.
Eis, em suma, a razão pela qual reputamos inconstitucional, do modo como está pautado, o PLP 18/2022, em seu escopo nuclear de redução da capacidade de custeio dos serviços públicos essenciais nos estados, DF e municípios, sobretudo em face do retrocesso que impõe aos pisos em saúde e educação.
*Élida Graziane Pinto é professora da FGV-SP e procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo.
Publicado no site Conjur