Acredito cada vez mais que o diálogo entre os munícipes e a cidade é o que vai nos tirar desse lugar que estamos e nos levar para aonde queremos ir.
Imagino que queremos ir para um espaço de segurança, de possibilidades, de alegrias e tristezas possíveis de serem corporificadas, vividas, entendidas. Um lugar que acolha nosso exercício na busca de, enfim, nos tornarmos humanos, cheios de experiências, sucessos e frustrações compartilhadas.
A cidade é (ou pelo menos pode ser) esse lugar! Aquela grande feira de mangaio onde trocamos o que não nos serve mais, por algo que o outro tenha de sobra – isso em termos de sentimentos, sensações, aprendizados, vivências, serviços disponíveis. Assim, podemos crescer e ver os outros crescerem com a cidade, entendendo o significado da palavra cidadania.
A partir da experiência de gestora pública municipal em um território com pouco mais de 25 mil habitantes, arrisco dizer que estamos desconectados, carentes de interação. E isso nos leva para um lugar de apatia, de paralisação. Enxergamos o caos no qual estamos inseridos nacionalmente. Até nos indignamos, mas não conseguimos (ainda) dar os passos que precisamos para salvar vidas, salvar a democracia, a constituição e o projeto de nação que sonhamos juntos!
O que nos divide e nos quebra diante desse propósito é a ideia que temos de cidade, é a crença de que uma cidade se desenvolve quando cresce, e cresce quando constrói (de preferência prédios cada vez mais altos) e para construir, destrói. A ideia é que, independentemente de nós, a cidade precisa se desenvolver e jogar para os cantos os analfabetos, os pretos, os pobres, os deficientes, os diferentes, todos que atrapalham essa corrida para a glória do desenvolvimento. Estamos presos a um ciclo vicioso que segue nos desconectando de nós mesmos e do que é essencial.
Nessa expectativa de cidade que vivemos, procuramos segurança e só achamos muros altos; procuramos amor, e encontramos feminicídio, preconceitos, homofobia, exclusão; procuramos a convivência, e encontramos o medo, o vazio. Enquanto a cidade “se desenvolve”, as pessoas deixam de se envolver, se desenvolvem! Esse modelo de desenvolvimento das cidades é opressor, excludente e, na sequência, vai nos tirando a convivência. Sem a convivência nos deparamos com a violência, a violência gera distanciamento e o distanciamento ignorância e apatia. Parece, de fato, um ciclo vicioso sem fim!
Promover o diálogo entre as pessoas e a cidade que elas escolheram para viver, pode significar um salto tremendo e uma mudança de rumo nesse momento aparentemente sem saída. Esgotamos muita coisa e precisamos inventar, descobrir, criar. Ter a coragem de criar!
Esse diálogo precisa ser facilitado preferencialmente pelo poder público. A caixinha de diálogos precisa ser aberta nos solos municipais pelos prefeitos e prefeitas das cidades brasileiras. Isso pode ser feito por meio de políticas de participação popular e da entrega de serviços que deem pequenas, mas compreensíveis e imediatas respostas às pessoas. A cidade é do povo, mas quem manda são os poderosos? Que ideia temos de poder? Precisamos ter a coragem de virar a mesa, colocar a toalha no chão e chamar os munícipes ao diálogo esclarecedor. As pessoas precisam ter acesso ao conhecimento, mais do que à informação. Estamos na era da tecnologia da informação e isso, ricos e pobres têm. O que precisamos é criar tecnologias que nos ajudem a transformar essas informações em conhecimento. Essa é nossa tarefa e a tarefa de todos nós.
Em Conde, na Paraíba, vivemos experiências enriquecedoras no sentido de promover o diálogo entre a cidade e as pessoas que nela vivem. Várias tecnologias de participação popular convergindo para que as pessoas dominassem conceitos, normas, regras para o bem estar e a convivência comum. Apontando os problemas, os desafios, provocando para que se pensasse juntos as possíveis soluções. Para isso, realizamos Oficinas de Ideias, Mutirão na Vizinhança, regularização fundiária, assistência técnica, levamos a cidade para a escola – sua história, seus heróis, sua cultura. Estes foram instrumentos que interferiram de forma concreta no “corpo” da cidade, assim como as legislações do meio ambiente. Lei de Zoneamento, o Inventário Cultural, interferiram no “corpo” do território, atingindo áreas rurais, áreas de proteção ambiental, praias, quilombos, aldeias indígenas, etc. E criar o hábito da participação, dar voz, ampliar a escuta e a busca do conhecimento cidadão, atingiu os munícipes, a “alma” da cidade. Começou a conversa!
A isso estou chamando de diálogo com a cidade. O ato de ouvir alguém gritar em uma rádio, falando sobre um buraco na sua rua, exigindo da prefeitura a solução imediata é diferente de troca de saberes, de ver a pessoa passa a entender que o buraco na sua rua de barro abriu porque ela e os vizinhos jogam as águas de esgoto e dos serviços na rua. Desta maneira, a pessoa acaba entendendo que não tem saneamento porque isso depende de obras caras, incômodas e que não dão votos aos políticos da qualidade dos políticos que ela muitas vezes escolheu. A pessoa vai entender que a rua não foi pavimentada porque as prioridades para o uso dos recursos públicos não foram definidas por ela. Dessa forma, quando a pessoa for para a rádio, vai saber exatamente o tamanho do buraco e vai ver que ele é muito mais embaixo. Sua voz terá força. A força do conhecimento, da responsabilidade cidadã e da verdade.
Para estimular essa participação, esse diálogo, implantamos nas 22 comunidades e nos distritos de Conde e Jacumã projetos como o Olá Comunidade, um projeto que tinha como objetivo promover o diálogo entre a prefeita e a população. Acontecia todas as terças e quintas, das 19 às 21 horas, sempre em uma comunidade diferente. Nessas ocasiões, se discutiam, de forma clara e simples, os desafios da comunidade e as possibilidades do poder público diante delas; se discutia os direitos e os deveres dos cidadãos e cidadãs e a visão de pertencimento e cidadania. Implantamos o orçamento democrático (ou participativo), reativamos e ampliamos conselhos deliberativos e implantamos a Lei de Gestão Compartilhada, garantindo a participação do povo por meio de grupos de WhatsApp.
Hoje, com a crescente desvalorização dos gestores e gestoras públicas, a criminalização da política e a crise de liderança que estamos vivendo, é fundamental aprofundar esse diálogo a partir do lugar que estamos: prefeituras, entidades, redes, escolas, universidades, ONGs, cidadãos e cidadãs, a fim de que as cidades sejam a voz da maioria (incluindo todas as minorias), concretar nossas necessidades e desejos, garantir autonomia e liberdade. Uma cidade que conversa abre caminhos para todos, cria união, forma laços e reforça a identidade e a cultura, pois conta histórias e memórias. Uma cidade que cresce a partir do diálogo, é uma cidade traduzida para os seus cidadãos e cidadãs e permite que tudo se transforme junto. Não dá mais para as cidades irem (ninguém sabe pra onde) e as pessoas ficarem deslocadas, se recolhendo para as ilegalidades das periferias por não terem crescido junto, se achando menor que a cidade. A cidade é para as pessoas, a cidade é com as pessoas, a cidade é das pessoas.
Ao final dos quatro anos, saímos da gestão municipal e estamos percebendo que os munícipes estão provocando, puxando a conversa, querendo entender, cobrando a cidade que eles pensaram planejaram. É tímida a conversa, sem resposta e sob constante ameaça do poder vigente que deveria ser seu interlocutor. Mas, de todo modo, é muito bom ouvir esse murmúrio. Vou entrar nessa roda pra conversar também! Esse assunto me interessa. Bora?
*Márcia Lucena é professora, ex-Prefeita do município de Conde/PB (2017-2020) e ex-Secretária de Educação da Paraíba (2012-2014) e colaboradora da Rede BrCidades.