Em maio do ano passado, em um outro artigo, chamei a atenção para o papel fundamental dos municípios no enfrentamento da crise vivida pelo transporte público no país, uma vez que os problemas impactam diretamente é a realidade local e que, por isso, as prefeituras deveriam se antecipar e, diante da eventual escassez dos orçamentos públicos, tentar utilizar alguns dos instrumentos de gestão expressos na Política Nacional de Mobilidade Urbana (PNMU) para viabilizar os recursos financeiros que poderiam vir a garantir um socorro emergencial para mitigar os riscos de um colapso na oferta do serviço.
Naquela ocasião fui criticado por alguns especialistas da mobilidade urbana que argumentaram que os outros entes federados também deveriam assumir suas responsabilidades no financiamento dos sistemas de transporte público e que os municípios não deveriam arcar com esse ônus sozinho. Destaco que em momento algum defendi que união e estados estariam liberados das suas obrigações, mas apenas que a crise exigia medidas rápidas e no curto prazo, que esse enfrentamento estaria muito mais próximo do âmbito das prefeituras em todo o país e que a espera por recursos externos, sem uma reação e a adoção de medidas concretas, poderia ser extremamente perigosa para as cidades.
E foi exatamente a indefinição quanto à participação efetiva dos governos federal e estaduais em contribuir com recursos financeiros para o socorro aos sistemas de transporte público, combinado com o aumento da pressão e da ameaça de paralisação de operações, que obrigou os municípios a buscarem soluções caseiras para resolver os seus problemas. Esse esforço isolado de prefeituras foi identificado no ótimo trabalho de pesquisa produzido pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC), denominado “Levantamento e análise de subsídios ao sistema de transporte coletivo por ônibus concedidos por Municípios”, com investigação durante o período de março/2020 a novembro/2021 e que alcançou um total de 171 cidades.
Segundo o estudo do IDEC, em pelo menos 122 cidades houve algum tipo de iniciativa por parte da prefeitura, com destaque para o subsídio emergencial (maior parte dos casos), o subsídio tarifário, a compra de gratuidades e o aumento do subsídio que já existia, entre outras. Em contrapartida à realização desses aportes públicos foi garantida a manutenção da tarifa usuário vigente (21,38% das situações), a sua redução ou outros compromissos pactuados.
A pesquisa do IDEC não se propôs a mergulhar no universo das contas públicas de cada município para tentar identificar como os recursos foram viabilizados dentro dos orçamentos locais, isso não era o seu objeto, mas infere-se que essa forma de apoio se deu por intermédio de algum tipo de renúncia fiscal por parte da prefeitura (o estudo até cita a isenção de ISS como o principal instrumento utilizado), ou através do remanejamento interno de dotações originalmente destinadas para outras áreas dentro do tesouro.
Nesse sentido, impressiona que, mesmo em situações de crise profunda e com necessidade de se encontrar alternativas para viabilizar o transporte público e a mobilidade urbana sustentável, os municípios ainda priorizam equações que gerem recursos por meio da transferência de valores de outras políticas públicas que também são importantes para a cidade e que poderiam ser ameaçadas de execução, em vez de viabilizar novas fontes através da utilização de algum dos instrumentos de gestão da PNMU, o que compartilharia a obrigação de seu financiamento com toda a sociedade. Mesmo assim, é preciso dar todo o crédito às prefeituras que conseguiram, mesmo provisoriamente, resolver os seus problemas a partir das suas próprias iniciativas.
Por outro lado, permanece o cenário de ausência e de descompromisso de Estados e da União com a pauta do transporte público. Os governos estaduais, com exceção de alguns poucos, como o de Goiás, que assumiu o financiamento de 41,2% do custo total da Rede Metropolitana de Transporte Coletivo da Grande Goiânia, acompanham à distância esse debate e não assumem as suas responsabilidades.
O governo federal é outra decepção e a evolução do orçamento do Programa de Mobilidade Urbana do Ministério do Desenvolvimento Regional (Código 2219) nos dá um pequeno parâmetro do pouco compromisso com o tema. Em 2020 foram destinados pouco mais de R$ 143 milhões para esse programa, em 2021 o valor caiu para R$ 40,9 milhões e, acreditem, neste ano eleitoral a dotação é de extraordinários R$ 2,8 bilhões, mas a “Ação 00T3 – Apoio a Sistemas de Transporte Público Coletivo Urbano” – conta com apenas R$ 76 milhões desse montante todo, sendo que R$ 2,7 bilhões (97% do valor total do Programa) foram alocados na “Ação 00T1 – Apoio à Política Nacional de Desenvolvimento Urbano Voltado à Implantação e Qualificação Viária”. Em resumo, o foco do Programa 2019 neste ano é o investimento em infraestrutura viária, mas não há nenhuma garantia de que isso será direcionado para o investimento em faixas e corredores exclusivos para o transporte público, por exemplo.
Desde 2020 se aposta em projetos de lei construídos e aprovados no Congresso Nacional como alternativa para gerar recursos financeiros que, no mínimo, promovam um socorro emergencial aos sistemas de transporte público coletivo no país. Foi assim com o Projeto de Lei no 3364/2020, que previa o repasse de R$ 4 bilhões, mas que foi integralmente vetado pelo Presidente da República, e a expectativa se manifesta agora na mesma intensidade com o Projeto de Lei no 4392/2021, que institui o Programa Nacional de Assistência à Mobilidade dos Idosos em Áreas Urbanas (PNAMI), com estimativa de recursos de R$ 5 bilhões.
Diante desse quadro, continuo insistindo que devemos reforçar a defesa da necessidade de se iniciar um debate com a sociedade para que os gestores municipais possam implementar medidas que gerem recursos novos para reforçar a manutenção e a qualificação da operação dos sistemas de transporte público, tudo isso em um cenário de curto prazo, fortalecendo o que foi feito por várias prefeituras nestes últimos dois anos, como bem mostrou o trabalho do IDEC. No entanto, tem-se clareza de que também é preciso dar o passo seguinte e apontar na perspectiva do encontro de soluções mais estruturadas para se iniciar o processo de transformações definitivas e, nesse sentido, avalio que o esforço coletivo deve ser para o desenho de um novo modelo para o sistema de transporte público e com início de construção a ser capitaneado já pela próxima gestão federal.
E é aqui que me convenço cada vez mais da importância e da urgência do Sistema Único de Mobilidade Urbana (SUM), proposta que o Instituto MDT defende há 5 anos, para a construção das bases de um novo transporte público. A aprovação de projetos de lei que garantam recursos para o custeio da operação tem vital importância, mas os fundamentos para que o transporte público se organize como uma política pública com articulação integral entre todos os entes federados, com atribuições claramente expressas e corresponsabilidades, estão organizados é dentro do escopo de um sistema único.
Sentimos falta da defesa e do apoio sistemático da sociedade ao transporte público, como costumamos encontrar na saúde, na educação e na assistência social, mas é somente dentro de um sistema único que essa participação vai se consolidar através dos conselhos de representação social e das conferências, passando a ser um elemento fundamental integrante da política pública, com responsabilidade pela aprovação dos planos, diretrizes, prestação de contas dos recursos alocados e pela avaliação periódica da execução das ações, dentro de um ambiente com dados abertos e com transparência. Essa mudança de paradigma é que vai fortalecer os vínculos e criar um espaço permanente de debate e de defesa da política pública.
É nesse cenário de sistema único que há espaço para que as decisões e as respectivas responsabilidades entre os gestores públicos dos 3 entes sejam construídas e pactuadas democraticamente dentro das comissões intergestores bipartite e tripartite, o que amplia a capacidade de implementação e de viabilização da execução dentro de uma engrenagem que se alinha em sintonia. Além disso, a institucionalização do papel dos gestores também é estabelecida através da fixação de atribuições dentro do sistema único para os conselhos de gestores públicos estaduais e municipais, como no caso do Conass e do Conasems para a área de saúde, que possuem estrutura orgânica, capacidade técnica e orçamento contando com recursos públicos do ministério para apoiar o processo de fortalecimento da política dentro do sistema, seja produzindo conteúdo técnico, prestando assessoria ou mesmo contribuindo para a qualificação de técnicos e gestores dos governos e da representação da sociedade civil.
Soma-se a isso a obrigação do cofinanciamento, onde seria promovida a fixação de percentuais dentro do orçamento de cada ente federado para o custeio da política de transporte/mobilidade, a transferência direta de recursos entre os entes via fundo-a-fundo, com fluxo da União para Estados e Municípios e dos governos estaduais para as prefeituras, sem a necessidade da utilização de instrumentos burocráticos e lentos, como os convênios e contratos, e a concentração de todo o montante gerado em fundos legalmente instituídos e cuja execução financeira é submetida à apreciação e aprovação do controle social.
Considerando que as participações dos Ministérios da Saúde e do antigo Desenvolvimento Social e Combate à Fome foram decisivas para a implantação e a construção, respectivamente, do Sistema Único de Saúde (SUS) e do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), avalia-se que a inserção do debate do SUM na agenda institucional a partir de 2023 é também uma estratégia para se tentar iniciar o processo de resgate do protagonismo do Governo Federal dentro da política de transporte/mobilidade urbana, passando a pilotar essa condução, articulando e garantindo a participação dos outros entes federados, mobilizando todos os agentes e oferecendo as alternativas legais para os entraves que surgirem.
Para ajudar nesse esforço, desde 2017 o Instituto MDT tem pronto um esboço de uma minuta de Projeto de Lei Orgânica do Sistema Único de Mobilidade Urbana para iniciar o debate com a sociedade, onde podem ser encontrados itens que fundamentam a proposta do SUM, como definições, objetivos, princípios, diretrizes, organização e gestão, competências, atribuições, financiamento e gestão financeira, planejamento e orçamento. Tem-se a convicção de que o processo de construção é longo, mas esse é o caminho.
* Wesley Ferro Nogueira é economista, atualmente é Secretário Executivo do Instituto MDT, colabora no Projeto “Pensar o transporte público na cidade planejada para o automóvel”, integra a Rede Urbanidade e é membro suplente do Conselho de Transporte Público Coletivo do DF.