O Brasil vive há mais de um ano uma grave crise – sanitária, econômica, social, ambiental e política – exigindo de toda sociedade, especialmente de governantes e representantes do povo, a busca do exercício pleno de cidadania e das liberdades democráticas, diante da violenta emergência humanitária. Em um contexto de afronta à dignidade humana, no qual a proteção social da população não foi garantida, em que se morre de fome ou de Covid-19, a sociedade civil organizada é quem tem canalizado as ações populares de solidariedade: quem tem fome, tem pressa. O País ainda é hoje o epicentro da pandemia da Covid-19 na América Latina, já caracterizada como sindemia.
Apesar da tendência de queda, ainda temos uma alta taxa de transmissão da doença, o terceiro maior número de casos no mundo e a maior taxa diária de mortes, mesmo sem considerar a subnotificação. Além disso, alertam-se os riscos da variante Delta já em circulação no país, comprovadamente mais transmissível e potencialmente mais grave. Destacamos os impactos da vacinação na diminuição de casos e mortes, no entanto, não podemos naturalizar essa estabilização e/ou queda com os altos números ainda apresentados. Vivemos uma situação de gravíssima emergência de saúde pública, com milhões de pessoas infectadas e a lamentável perda de centenas de milhares de vidas.
É imprescindível e urgente ampliar a aquisição das vacinas, fortalecer as campanhas de vacinação, além das demais medidas não-farmacológicas: uso de máscaras, restrição de circulação e mobilidade, oferecendo as condições concretas para dar à população o direito ao exercício do isolamento/distanciamento social, garantindo sua proteção e segurança, com auxílio emergencial digno. O Ministério da Saúde não tem investido na necessária testagem em massa da população como medida de vigilância e detecção de casos e contactantes.
Se é verdade que a convivência com o novo coronavírus representou uma ruptura com o modelo de relacionamento social e de desenvolvimento das atividades econômicas, não é menos verdade que, no Brasil, o descaso do governo federal para com as condições de vida do conjunto da população brasileira ficou evidenciado, especialmente em relação a maioria que sofre com a desigualdade social e de renda ampliada no país nos últimos anos e, importante destacar, anteriormente às necessidades de enfrentamento da Covid-19 – como decorrência da política econômica baseada na austeridade fiscal.
O processo de desfinanciamento do Sistema Único de Saúde, definido pelos especialistas como sendo a redução dos recursos orçamentários e financeiros federais, que já eram insuficientes, para o cumprimento do mandamento constitucional de que “a saúde é direito de todos e dever do Estado”, teve na Emenda Constitucional 95/2016 a comprovação de que a política econômica baseada na austeridade fiscal fragilizou estruturalmente o nosso sistema de saúde tanto para garantir a universalidade e a integralidade dessas ações e serviços, como para o enfrentamento da pandemia a partir de fevereiro de 2020 (ver a esse respeito alerta preliminar de especialistas feito em março de 2020, disponível em https://www.abrasco.org.br/site/noticias/mudar-a-politica-economica-e-fortalecer-o-sus-para-evitar-o-caos/46220/).
Adotando como referência alguns estudos realizados por especialistas [1] em Economia da Saúde, inclusive para a Comissão de Orçamento e Financiamento do Conselho Nacional de Saúde (Cofin/CNS), deixaram de ser alocados no financiamento federal do SUS cerca de R$ 22,5 bilhões até a programação orçamentária inicial de 2020 (antes da Covid-19), enquanto as despesas per capita caíram de R$ 595,00 em 2017 para R$ 583,00 em 2019 (em valores reais a preços de 2019).
Vale lembrar que a possibilidade concreta dessa redução ocorrer foi alertada pelo Conselho Nacional de Saúde quando da tramitação das PEC’s na Câmara e no Senado (que resultaram na aprovação da EC 95 em dezembro de 2016), pois congelar por 20 anos o piso federal do SUS no valor desse piso de 2017 em conjunto com o estabelecimento de um teto de despesas primárias no valor de 2016, ambos atualizados somente pela variação anual da inflação, era regramento que desconsiderava tanto o crescimento populacional de 0,8% ao ano, como o custo crescente (como decorrência do desenvolvimento tecnológico dos equipamentos e dos medicamentos) para o atendimento das necessidades de saúde de uma população que tem envelhecido nos últimos anos, com projeção de atingir 1/3 do total para a faixa acima de 60 anos a partir de 2040/2050, segundo o IBGE.
Nessa perspectiva, a entrada do novo coronavírus no Brasil em fevereiro de 2020 aprofundou a crise econômica e agravou a situação da saúde pública no Brasil, diante da falta de coordenação nacional para o enfrentamento da pandemia, que por sua vez foi responsável pelo aumento de casos e de mortes evitáveis por Covid-19, tanto em 2020, como em 2021.
O desrespeito às recomendações e resoluções do Conselho Nacional de Saúde antes e durante essa pandemia, aliado à falta de planejamento articulado na Comissão Intergestores Tripartite, impossibilitou a antecipação de problemas evitáveis em prejuízo das condições de vida da população, o que dificultou ainda mais o nosso sistema de saúde nas ações para enfrentar o coronavírus, expresso na lentidão de uso dos recursos orçamentários em 2020, tanto nas ações diretas do MS, como nas transferências fundo a fundo para Estados, DF e municípios (que ocorreu concentradamente somente em agosto/2020 e, depois, no final do ano), inclusive para a compra de vacinas e de insumos para fabricação nacional, como está revelando a Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado.
Mas, o pior, a irresponsabilidade sanitária está tendo prosseguimento em 2021, que foi iniciado sem um centavo programado no orçamento do MS para enfrentamento da Covid-19, bem como sem nenhum objetivo e meta para esse fim na revisão do Plano Nacional de Saúde 2020-2023, que foi submetida e reprovada pelo CNS no 1° semestre de 2021. E continuará em 2022, com recursos insuficientes para o atendimento das necessidades de saúde da população, inclusive para vacinas e para as demais ações de enfrentamento da Covid-19, no Projeto de Lei Orçamentária da União para 2022 encaminhado ao Congresso Nacional no final de agosto passado.
Os recursos orçamentários para o enfrentamento da Covid-19 estão sendo viabilizados em 2021 por meio de abertura de créditos extraordinários insuficientes e a “conta-gotas” (ver a esse respeito estudo disponível em https://www.ie.ufrj.br/images/IE/grupos/GESP/gespnota202101.pdf ), evidenciando mais uma vez a inexistência tanto de uma coordenação nacional, como de um processo de planejamento integrado tripartite, cujas consequências gravíssimas para a população ocorreram no primeiro quadrimestre de 2021, com a falta de oxigênio em Manaus e de leitos de UTI por todo o Brasil, além dos equipamentos, materiais e medicamentos para essas internações. Novamente, mais casos e mortes evitáveis ocorreram pelo Brasil.
Mas, a omissão do governo federal ficou mais uma vez evidenciada quando foram reduzidas em 63% para os municípios e 17% para os estados as transferências do Fundo Nacional de Saúde para o enfrentamento da Covid-19 no primeiro quadrimestre de 2021 (ver estudo disponível em http://idisa.org.br/domingueira/domingueira-n-25-julho-2021). É oportuno destacar que os municípios brasileiros aumentaram nos últimos 20 anos sua participação no financiamento do SUS, sendo responsáveis atualmente por cerca de 32% de tudo que se gasta com saúde no Brasil, aplicando em média cerca de 25% da receita base de cálculo para essa apuração (muito acima do piso constitucional-legal de 15%), diferentemente do governo federal que reduziu sua participação no mesmo período para 42%, mesmo tendo disponível nos cofres federais o equivalente a 57% da receita disponível total oriunda do valor arrecadado pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios.
A homenagem que podemos fazer para as mais de 570 mil vítimas da COVID-19 é FORTALECER E APERFEIÇOAR O SUS E REMONTAR O COMPLEXO INDUSTRIAL DA SAÚDE. Uma das principais conquistas do povo brasileiro o Sistema Único de Saúde, que estabeleceu saúde como Direito e responsabilidade do Estado, com seu caráter universal, integral, público e gratuito, que atua na promoção, proteção e recuperação da saúde deve ser fortalecido e sua implementação aperfeiçoada a fim superar os desafios a ele impostos e garantir sua gestão pública, democrática e participativa, focada nas necessidades de saúde do povo.
A Emenda (in)Constitucional 95 viabilizou o afastamento do Poder Executivo Federal de suas obrigações de garantir os direitos de cidadania ao impor até 2036 o teto de despesas primárias nos níveis de 2016 (portanto, não há teto para as despesas com pagamento de juros e amortização da dívida) e o piso no nível do “subsolo” para a saúde e educação – está congelado no valor dos respectivos pisos de 2017. Esse é o principal motivo que justifica a revogação da EC 95 e a retomada da luta para que a União aplique, no mínimo, 10% das suas receitas correntes brutas, rompendo com o crônico subfinanciamento e o recente desfinanciamento, sendo que o primeiro passo para isso já foi dado com a aprovação em primeiro turno da PEC01-D-2015 pela Câmara dos Deputados.
Outro passo importante poderia ser dado pelo Senado Federal com a aprovação da PEC 36-2020, que revoga o teto de gastos e o congelamento do piso da saúde, que seriam substituídos por outros critérios vinculados ao processo de planejamento do Estado brasileiro, inclusive com regras de transição para esse fim.
Com isso, seriam então garantidos os recursos financeiros para: promover a atenção primária (Estratégia da Saúde da Família), a vigilância em saúde, a assistência farmacêutica, a estruturação hospitalar em todos os níveis de atenção, a descentralização regional e municipal, garantindo acesso universal e resolutividade. Valorizar o Trabalho em Saúde, que com os insumos estratégicos é quem produz de fato do direito à saúde, constituir e investir na Carreira do SUS, no trabalho em equipe multiprofissional, na educação permanente, no aperfeiçoamento, na especialização e formação em saúde em serviço e comunidade, para garantir o vínculo entre a população, as equipes de saúde e o SUS. Fortalecer a comunicação em saúde para as comunidades, garantindo amplo acesso à internet nos territórios, efetivar ações de promoção e cuidados integrais em saúde mental, nas famílias, empresas e comunidades, promover a proteção aos vulneráveis e a equidade em saúde, apoiar a Saúde da Mulher e redobrar os cuidados materno-infantil, garantir a Saúde Bucal, fortalecer atenção integral à saúde dos trabalhadores/as e garantir a participação da comunidade no controle social do SUS.
Além disso, para garantir a eficácia e eficiência do SUS, é necessário promover os investimentos estratégicos no desenvolvimento e ampliação do complexo econômico industrial da saúde, destinados a garantir a produção de Imunobiológicos, vacinas, equipamentos, medicamentos, ingredientes farmacêuticos ativos, intermediários de síntese, além da construção de plataformas tecnológicas, baseadas no domínio da biotecnologia moderna, na engenharia genética e na bioprospecção da flora e fauna de forma sustentável, garantindo às indústrias nacionais, farmacêuticas, farmoquímicas, biotecnológicas e de equipamentos, sejam públicas ou privadas, as condições necessárias para a produção nacional dos insumos estratégicos para a saúde, economizando divisas e garantindo a verticalização da produção interna e a nossa autossuficiência nacional neste setor vital da economia e da vida.
O SUS estabeleceu a Saúde como direito, e com o advento da Política Nacional de Assistência Farmacêutica (PNAF), em 2004, o medicamento passou a ser um insumo garantidor desse direito.
Assim, mais do que responsabilizar criminalmente aqueles que buscam lucrar ou beneficiar-se politicamente de forma vil, inescrupulosa e negacionista da demanda por um “remédio” através do incentivo ao uso incorreto de medicamentos contra a Covid-19, a sociedade brasileira precisa reforçar os mecanismos que a protegem da tirania na política e da ganância do mercado, que desconsideram e desprezam as necessidades e bem estar das pessoas, a ciência e a vida, que passa pelo fortalecimento do SUS e a submissão dos setores complementares e suplementares, na sua regulação e planejamento, incluindo a farmácia que, a partir de 2014, passou à condição de uma unidade de prestação de serviços destinada a prestar assistência farmacêutica, assistência à saúde e orientação sanitária individual e coletiva.
Superar a dependência internacional e vulnerabilidade nacional com a integração da saúde, economia, meio ambiente inovação e produção é uma necessidade do século XXI.
[1] Destacamos para este texto as contribuições, publicadas de forma individual ou coletiva, dos pesquisadores Bruno Moretti, Carlos Ocke-Reis, Erika Aragão, Francisco R. Funcia e Rodrigo Benevides.
Ronald dos Santos, Farmacêutico Mestre em Farmácia pela UFSC, Farmacêutico do Centro de Informações Toxicológicas de Santa Catarina, Presidente da Federação Nacional dos Farmacêuticos, Membro da Direção Nacional da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil -CTB
Francisco R. Funcia, Economista e Mestre em Economia Política pela PUC-SP. Professor dos Cursos de Economia e Medicina da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS) e Vice-Presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde (ABrES).
Publicado na Revista Eletrônica Domingueira da Saúde em 30 de setembro de 2021.