O Sistema Único de Saúde (SUS), criado 40 anos após o sistema de saúde inglês (NHS-1948), coincidiu com a era Thatcher e as suas teorias liberalizante que ganharam mundo, fato que influenciou a implantação dos direitos sociais brasileiros, tardiamente conquistados e tão cedo desconsiderados pelos sucessivos governos pós- Constituição de 88. Esse fato levou os defensores do direito à saúde a ansiarem pela visibilidade do SUS nas mídias para a sua própria proteção e despertamento do sentimento de pertencimento da sociedade.
Como o direito à saúde reclama suporte orçamentário e este foi previsto inicialmente no ato das disposições constitucionais transitórias (ADCT), que delegou às leis de diretrizes orçamentárias a alocação de 30% dos recursos do orçamento da seguridade social para o seu financiamento. Mas isso não aconteceu de fato.
O SUS sempre foi combatido por economistas da esfera pública ou privada; ignorado pela mídia; mal compreendido pela sociedade – cansada talvez dos escândalos do INAMPS e de seus serviços insuficientes – e pelas próprias autoridades governamentais.
A implantação do SUS coube ao governo Collor em 1990, num cenário conturbado de elevada inflação anual, denúncias de corrupção, impeachment, renúncia, tendo amargado dentro do próprio Ministério da Saúde, herdeiro do INAMPS e de suas práticas equivocadas, incompreensões como a da Resolução INAMPS 258 que preconizava ser o SUS um “departamento” do Ministério da Saúde e as transferências obrigatórias de recursos federais para os estados e municípios, um “crédito de confiança” dado pela esfera federal a esses entes. Somente no Governo Itamar Franco recebeu melhor atenção.
Nesse início do SUS muitos equívocos foram cometidos, como a manutenção das defasadas tabelas de procedimentos do INAMPS; o enfraquecimento do papel do estado-membro em sua relação com os municípios na organização do SUS, com o equivocado fortalecimento da relação federal-municipal; o fortalecimento das atividades curativas em detrimento à prevenção e a desatenção aos fatores condicionantes e determinantes da saúde.
O SUS em sua concepção constitucional continua atualíssimo e não seria subfinanciado se cumprido fosse o disposto no ADCT, art. 55, que lhe garantiria hoje, ao invés de 125 bilhões anuais de recursos federais, por volta de 270 bilhões.
Diversas são as diretrizes e concepções altamente meritórias do SUS, como a necessidade de os serviços de todos os entes federativos estarem organizados em redes de atenção e em regiões de saúde; a governança interfederativa, própria de um sistema de saúde unificado e descentralizado; a participação social, organizada em conselhos de saúde atuando na discussão das estratégias das políticas de saúde e em seu acompanhamento e a universalidade do acesso à saúde.
Contudo, o cumprimento desse ideal sanitário não tem se efetivado na vida real. Teorias e práticas que ainda não se uniram, sendo muitos os seus desafios, como o financiamento suficiente, com a EC 95 a constranger seus recursos ano a ano; o baixíssimo incentivo ao desenvolvimento técnico-científico para a sustentabilidade do SUS; a falta de regulação da qualidade dos serviços de saúde; o fraco papel do Ministério da Saúde de pensar e planejar a saúde a longo prazo; a necessidade de melhor disciplina de seu sistema de informações e atuação para a formação de recursos humanos para o SUS. O descumprimento de suas competências legais, como a de coordenação nacional de pandemias, como a da Covid-19.
Batem à porta do SUS a saúde digital, o prontuário eletrônico interoperável, a atenção primária de qualidade, a região de saúde resolutiva; o mapa sanitário e as prioridades em planejamento de longo prazo, com metas quantitativas e qualitativas; as necessárias inovações nos serviços; a educação para o autocuidado; o fortalecimento da Conitec e a sua proximidade com a Anvisa; a racionalidade da medicina, sem excessos. Essas questões se impõe na saúde do século XXI, associada à regulação dos direitos das pessoas às disposições prévias de vontade sobre o processo do morrer; a ortotanásia, a distanásia, que ainda não estão reguladas em lei em nosso país.
Com o SUS na mídia pelas respostas dadas aos cuidados com as pessoas na pandemia da Covid-19, importante pontuar seus méritos e bem como seus desafios para que a sociedade e o Estado sejam capazes de resolvê-los.
Lenir Santos, advogada, doutora em Saúde Pública pela Unicamp, professora colaboradora do Departamento Saúde Coletiva Unicamp e presidente do Instituto de Direito Sanitário – IDISA.