O presidente da Associação Brasileira de Municípios (ABM) e prefeito de São Leopoldo (RS), Ary Vanazzi, foi entrevistado pelo jornal Valor Econômico para um especial sobre o Saneamento, tendo como referência o Novo Marco Regulatório, aprovado em 2020, publicado no dia 31 de maio. Do conjunto de observações foi publicada a análise sobre o processo de regionalização da prestação do serviço.
Publicamos, porém, a integra das declarações do presidente da entidade que faz uma análise profunda e crítica do processo em curso nos municípios brasileiros.
Pergunta – Os municípios estão em desacordo com essas novas regras? Se sim, por quê?
Vanazzi – Nós, da Associação Brasileira de Municípios (ABM), que representamos municípios, identificamos muitas dificuldades com essas novas regras. Os problemas envolvendo o saneamento básico no nosso país envolve falta de investimentos, falta de direcionamento de recursos e vontade política para execução.
O governo federal não tem estratégia, não tem planejamento, vive da política de troca de favores no Congresso Nacional, emendas parlamentares e por pressão da iniciativa privada, forçou a aprovação deste projeto.
Na verdade, o quadro envolvendo o Novo Marco do Saneamento é muito mais complexo do que estar ou não de acordo com as novidades trazidas por esta lei. A grande maioria dos municípios sequer está alinhada com a Política Nacional de Saneamento de 2007, veja só, após 15 anos. E o governo, ao aprovar este novo marco, não pensou no mais importante: financiamento, agilidade e desburocratização.
As exigências da nova lei estão longe de serem cumpridas., mesmo com o prazo estabelecido até 2033. A realidade envolvendo o saneamento no Brasil é ruim desde o tempo do império, com falhas absurdas em termos regionais. Norte e Nordeste, por exemplo, têm a pior cobertura, Sul e Sudeste a maior. Este contraste não é levado em conta. Na nossa avaliação, o objetivo final desta nova lei é a privatização dos serviços públicos como abastecimento de água, esgotamento sanitário e drenagem urbana, por exemplo. Os resíduos sólidos já estão sob gestão privada.
Não acreditamos na proposta que fala sobre a universalização do saneamento até 2033 por vários fatores que impedirão o cumprimento dessa norma, como a escassez de recursos para a área; a falta de diálogo entre o Governo e Congresso com os Municípios (que são os titulares do serviço de saneamento, como já decidido pelo STF) e demais atores do processo; a descontinuidade de políticas públicas para o saneamento básico do Governo Federal; a discrepância entre os orçamentos dos municípios, de acordo com sua localização federada; a transformação da ANA de agência regulatória de entidade central da Política Nacional de Recursos Hídricos, para acumular, também, a competência de órgão normatizador do saneamento básico; prazos exíguos, dentre outros. Assim, passados quase dois anos da publicação do Novo Marco ainda não houve a movimentação esperada pelo Governo Federal. Mas isso não significa que nada avançou, pois, diversos órgãos públicos de saneamento foram concedidos à iniciativa privada, como em Alagoas, Mato Grosso do Sul, Amapá, Rio de Janeiro, Goiás e Ceará, sendo a Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro – CEDAE o maior exemplo desta “nova política” de saneamento básico.
Pergunta – Essa é uma forma de pressionar os gestores a adequar os serviços de água e esgoto ao novo marco?
Vanazzi – A fixação da regionalização da prestação de serviços de saneamento básico como requisito para a o acesso a verba federal, inicialmente deve ser conceituado como é, ou seja, uma medida coercitiva imposta pelo Governo Federal e Congresso Nacional. O Novo Marco Regulatório é taxativo ao estabelecer esta medida como condição para que os municípios possam receber verba federal. Fica claro que o Governo Federal entende que somente a privatização dos serviços de saneamento básico é a solução. O termo “concessão” aparece 27 vezes no corpo da lei, sendo inclusive prevista a possibilidade de subdelegação da prestação do serviço público de saneamento e a criação da Regime Especial de Incentivos para o Desenvolvimento do Saneamento Básico, o que torna cristalino que o intuito é a desestatização do serviço por órgão público.
Se a ideia fosse mesmo universalização, os incentivos seriam direcionados às empresas públicas de saneamento.
Pergunta – O que podemos esperar dessa digamos “pressão” da lei? Ou seja, os municípios vão cumprir? Ou não?
Vanazzi – Esta pressão ou melhor dizendo, condição, parece não ser impositiva, o titular da prestação de serviço de saneamento pode optar por não desestatizar ou regionalizar, tendo o serviço prestado por entidade que integre a administração do titular do serviço de saneamento e o Consórcio Público. Contudo, nesta hipótese, não poderá receber recursos oriundos da União e verbas de financiamentos geridos ou administrados por órgão ou entidade da administração pública federal.
Mas, mesmo assim, os municípios se sentem pressionados a aderir a esta regionalização que não tem nenhuma realidade objetiva. Nós defendemos, por exemplo, que a regionalização deveria ser feita a partir das bacias dos rios, e não da forma proposta, como regionalizar por área, com critérios que podem ser totalmente diversos entre os municípios, impossibilitando políticas conjuntas que tenham efetividade. Como universalizar o estado inteiro, caso do Rio Grande do Sul, por exemplo? Não há sintonia entre uma região, uma bacia e outra, são completamente diferentes. A segunda “pressão”, é que quando o governo federal estabelece datas, o que acontece? Os órgãos fiscalizadores, o Ministério Público por exemplo, exige plano de ação dos municípios, exige que eles comecem a investir, querem uma resposta. Então, o governo federal criou uma data e colocou os municípios na defensiva, ou pior, na mira dos órgãos fiscalizadores.
Isso leva os gestores a ter problemas de ordem jurídica, de ordem criminal, de improbidade administrativa. Isso é um crime que fizeram com os municípios. Tu podes até ter o planejamento, mas de onde tirar o dinheiro para executar?
Então, a pressão é maior sob o ponto de vista jurídico, técnico e de órgãos fiscalizadores. E isso tem que ser denunciado pela ABM, pela entidade que defende os municípios.
Pergunta – O que pode ou deve ocorrer se os titulares dos serviços de saneamento não promovam os leilões das operações?
Vanazzi – Há de se esclarecer que os chamados “leilões” são na verdade uma modalidade de licitação, sendo que o Poder Público não está vinculado somente a esta modalidade de licitação para contratar a prestação dos serviços de saneamento. O Novo Marco Regulatório do Saneamento tornou obrigatória a licitação para a prestação do serviço, não sendo mais possível a formalização de Contrato de Programa, Convênios, Termo de Parceria ou similares. A regra é o prévio procedimento licitatório, onde as companhias/empresas públicas concorrem de igual para igual com a iniciativa privada. A única exceção a essa regra é a prestação do serviço de saneamento por entidade que integre a administração do titular. A eventual não realização do processo licitatório e tampouco a prestação por entidade que integre a administração do titular abre a possibilidade de interrupção do serviço, que é a consequência mais grave e temerária de todo este imbróglio criado.
Por isso dizemos que a universalização não ocorrerá até 2033. Esse prazo não será cumprido, inclusive com a continuidade do precário quadro envolvendo o saneamento básico nos municípios de pequeno e médio porte, com populações inferiores a 100 mil habitantes (que representam cerca de 95% dos 5.568 municípios do país).
Pergunta – Essas regras do novo marco legal são mesmo necessárias para o Brasil conseguir universalizar seus serviços de saneamento?
Vanazzi – Sim e não. Sim porque todas as justificativas que alicerçaram o PL que culminou no Novo Marco Regulatório do Saneamento (garantir maior segurança jurídica aos investimentos no setor de saneamento básico; aperfeiçoar a legislação de gestão dos recursos hídricos e a de saneamento básico; fazer com que a grande variabilidade de regras regulatórias deixem de se consolidarem em obstáculo ao desenvolvimento do setor e à universalização dos serviços; melhora na qualidade das normas regulatórias para o setor de saneamento básico; maior uniformização regulatória em todo território nacional; adequação das regras de saneamento básico com os Consórcios Públicos; imposição a todos os contratos de prestação dos serviços públicos de saneamento básico a definição de metas de universalização que garantam o atendimento da população com água potável e esgotamento sanitário até 31/12/2033, o atendimento de 99% da população com água potável e de 90% com coleta e tratamento de esgotos) são importantes, mas, não indispensáveis.
E não, porque mesmo que se compactue 100% das justificativas e se entenda que estas são necessárias, sua implantação poderia ter como norte a lógica utilizada na Política Nacional de Saneamento Básico da Lei nº 11.445/2007, que se pautava pelo fomento, estímulo e financiamento para as companhias/empresas públicas que prestam esse serviço. Isto porque, esta política pública implementada em 2007 foi decorrente de um longo processo de discussão entre o Poder Público e a sociedade, com base na priorização da coisa pública e fundamentado em dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento – SNIS, bem como seus órgãos antecessores, como o Departamento Nacional de Obras de Saneamento – DNOS, a Diretoria de Saneamento da Baixada Fluminense- DSBF, etc.
O mais importante deste debate criado pelo governo não é o tema do saneamento. O que está por trás disso é a privatização da água. Nenhuma empresa privada vai fazer investimento ou buscar concessão se não estiver junto a água. A água torna-se garantia para receber o esgoto. Isso é ou não privatização da água? Na Europa, por exemplo, cerca de 70% dos municípios que privatizaram os serviços, o Estado teve que retomar, para garantir a universalização da água para a população.
Pergunta – É também uma forma de pressionar os gestores a adequar os serviços de água e esgoto ao novo marco? Por que e o que deve acontecer se não for cumprida a lei?
Vanazzi – Com certeza. Como a Lei nº 11.445/2007 com redação dada pela Lei nº 14.026/2020 não trazem em seu bojo penalizações para o descumprimento da norma, assim como o Decreto nº 7.217/2010, cabe ao próprio Poder Executivo fazer cumprir a lei. Também, os Ministérios Públicos (dos Estados e Federal) têm competência prevista no artigo 127 da Constituição Federal de 1988 para tal ação. Mas que fique claro, que a maior pressão reside na impossibilidade de acesso a recursos federais para o saneamento básico, caso as disciplinas da lei não sejam observadas e cumpridas.
Pergunta – O que o Ministério Público pode fazer para a lei ser cumprida?
Vanazzi – O Ministério Público possui formas extrajudiciais e judiciais para agir. A Lei nº 7.347/1985 também chamada de Lei da Ação Civil Pública prevê a possibilidade de instauração de Inquérito Civil, que se assemelha ao Inquérito Policial, tratando-se de uma ação extrajudicial. Outra medida extrajudicial é a formalização de Termo de Ajustamento de Conduta – TAC, que se pode dizer que é um acordo firmado entre o infrator/acusado e o órgão ministerial.
Por fim, pode ajuizar uma Ação Civil Pública, perante o Poder Judiciário. Todos estes instrumentos estão previstos na lei da ACP.