Prefeito de São Leopoldo, que teve a casa inundada, diz que a tragédia obrigará os candidatos a apresentar programas com diretrizes ambientais e planejamento estratégico
De Valor Econômico, por Maria Cristina Fernandes
Presidente da Associação Brasileira dos Municípios, o prefeito de São Leopoldo, Ary Vanazzi, hoje governa uma população de 80% de desabrigados. Trinta e quatro mil casas ficaram debaixo d’água no município, inclusive a sua. A despeito da tragédia, o prefeito não adere à tese de que as eleições municipais devem ser adiadas no Rio Grande do Sul. “Temos que manter todos os calendários. A renovação democrática faz parte da reconstrução de nossas cidades e do Estado”, diz.
Aos 66 anos, Vanazzi concluirá seu quarto mandato à frente da prefeitura. Foi eleito prefeito a primeira vez em 2004 e reeleito quatro anos depois. Em 2016 voltou a se eleger ao mesmo cargo, tendo sido reconduzido em 2020. Sempre pelo PT. Rejeita a extensão de seu mandato e diz que a tragédia obrigará os candidatos a apresentar programas de governo com diretrizes ambientais claras e planejamento estratégico que dote os municípios de estruturas de prevenção de eventos climáticos extremos como o desta enchente, decorrente de inéditos 630mm de chuva acumulados em 48 horas.
Tudo isso terá que ser feito concomitantemente com os cuidados imediatos com a sobrevivência dos desalojados e a recuperação de suas casas, mas Vanazzi diz que não há alternativa. Tem a convicção de que o calendário eleitoral deve ser mantido a despeito das pressões de partidos pelo adiamento.
Um dos principais pólos industriais do Rio Grande do Sul, beneficiado pela proximidade de Porto Alegre (35 km), São Leopoldo é sede de grandes empresas como a Stihl, Taurus, Gedore e um parque tecnológico com multinacionais como a coreana HT Micron, além da Unisinos, a quarta melhor universidade privada do país. Por estarem em terreno elevado, não foram atingidas pela água mas pela obstrução da malha viária. O mesmo não aconteceu com os produtores agrícolas cujos cultivos foram inundados.
Vanazzi diz que a despeito do cenário de guerra em que se encontra a cidade, a situação poderia ter sido pior sem o dique e as 21 bombas que constituem o sistema de proteção de São Leopoldo e que foram construídos em 1941. O dique passou no teste da cheia de 65, mas agora foi encoberto. Naquele ano a água do rio dos Sinos, que banha a cidade, subiu 7,40 metros. Desta vez, chegou a 8,08 metros. “O dique foi ultrapassado pela água e abriu valetas, mas não rompeu, senão teríamos tido um cenário ‘Brumadinho’”, diz, ao informar que dos 220 mil habitantes há apenas duas mortes confirmadas, ainda sem laudo.
O casal Guilherme e Gabriela Kastner, de 38 e 34 anos, e uma filha de 2 anos moravam no quinto andar de um prédio no centro da cidade. Depois de ficarem de domingo até a terça-feira ilhados, decidiram abandonar a cidade pela insegurança com a elevação do nível da água, que chegou a 2,20 metros nos pilotis do prédio. Confiavam na capacidade dos diques de conter a enchente até que, na madrugada do domingo, a água os ultrapassou e começou a encher o centro da cidade.
Das queixas que têm sobre os esclarecimentos em relação a esta possibilidade e sobre o acesso às estradas, conclui-se que houve, de fato, ruídos na comunicação. Vanazzi diz que carros de som percorreram os bairros atualizando sobre o nível dos rios e que as estradas para a Serra Gaúcha e para o litoral estavam de fato bloqueadas, mas a família Kastner conseguiu atravessar a ponte em zona rural que liga São Leopoldo a Novo Hamburgo em carro alugado e deixar o Estado rumo a Florianópolis, onde hoje está.
A maior dificuldade foi retirar Gabriela de casa sem se molhar, pelo risco de a leptospirose afetar sua gestação de três meses. A evacuação de toda a família foi feita por voluntários, confirmando a pesquisa Genial/Quaest. Nesta pesquisa o voluntariado foi eleito como o grande herói desta tragédia, com atuação aprovada por 88% dos entrevistados, superior àquela de influenciadores e artistas (73%), lideranças locais (72%), igrejas (70%) e empresários (65%).
“A renovação democrática faz parte da reconstrução”
Ary Vanazzi
O casal se sente envergonhado por ter perdido “apenas” um carro e ter seu apartamento intacto. De Florianópolis, onde estão, eles têm o sono atribulado pela ansiedade sobre o futuro. A despeito das queixas sobre os ruídos de comunicação, não culpam o poder público. “Foi uma fatalidade”, diz Guilherme, que é engenheiro e trabalha remotamente para uma empresa de São Paulo. “Ouvimos as pessoas falarem em orçamento para prevenção de enchentes mas mesmo que tivesse havido mais dinheiro para a manutenção do sistema, não teria dado conta do volume de água”, diz.
Gabriela converge com a avaliação predominante sobre o impacto das mudanças climáticas, mas diz que é difícil racionalizar sobre as causas da enchente enquanto ainda se está no meio do desastre. Converge com alguns dos achados da pesquisa Genial/Quaest, mas não todos. Seus questionários apontaram que 64% relacionarem as enchentes com as mudanças climáticas e 70% acham que algo poderia ter sido feito para evitar a tragédia.
O dado mais intrigante da pesquisa é o gráfico que compara as explicações dadas para as mudanças climáticas em dezembro e hoje. Cinco meses atrás, no pico do verão, a “ação humana” foi apontada como razão para as mudanças climáticas por 73%. Nesta pesquisa, caiu para 58%. Ao mesmo tempo, aqueles que veem “outros motivos” além da “ação humana” subiram de 7% para 27% no mesmo período.
O prefeito, que não tem dúvida de que o volume de chuvas recorde decorre do aquecimento do planeta, confia que o empresariado agrícola sairá deste desastre mais consciente da necessidade de preservação ambiental. Não apenas pelos prejuízos decorrentes da enchente mas também por aqueles causados pelas secas recorrentes no Estado. Gianazzi tem, em comum com os munícipes que administra, a necessidade de reconstruir sua casa do zero – “Da minha casa só restaram as paredes. Cama, geladeira e uma história de vida de 60 anos se perderam”.
O casal Kastner espera a água baixar para voltar a São Leopoldo. Segundo o prefeito, a água tem recuado 30 centímetros por dia. “Tenho a consciência de que o pior ainda não passou”, diz Gabriela, que é professora de marketing digital. “O Rio Grande do Sul como conhecemos não existe mais”.